Resenha: Os bebês de Auschwitz

Angústia, dor, revolta e lágrimas nos olhos. Parece-me um tanto óbvio que esses sejam os sentimentos e a reação física de quem lê Os bebês de Auschwitz, de Wendy Holden, e esse texto não pretende fugir às obviedades ao abordar o livro. Isso porque estamos vivenciando um momento de negacionismo histórico e o fortalecimento de narrativas fascistas no Brasil. É perturbador imaginar que cresce o número de células neonazistas no país, principalmente, na região Sul. Portanto, nesse texto, tratarei do óbvio, ou seja, do quanto o nazismo foi um regime totalitário genocida e criminoso, que deixou um rastro de sangue, dor e desamparo moral e ético do mundo diante da banalização do mal, porque dizer o óbvio tem se mostrado cada dia mais necessário, infelizmente…

Se no colégio estudamos de modo generalista o que foi o regime nazista, a Segunda Guerra Mundial e a disputa entre Aliados versus Eixo, neste livro, podemos acompanhar, por meio da vida de três mulheres – Priska, Rachel e Anka –, os detalhes da crueldade do regime nazista alemão contra os judeus de diferentes nacionalidades.

O livro reconstrói a história familiar das três, iniciando pela sensação de que as mudanças políticas, legais e sociais que estavam atravessando não iriam afetá-las. A gradativa perda material e de direitos dentro dos territórios alemães, ainda que apontasse para o fato de que nada ia bem, não foi o suficiente para Priska, Rachel e Anka acreditarem que a perseguição chegaria ao nível de violência que elas tiveram que enfrentar nos guetos e campos de concentração. Isso, talvez tenha sido uma das coisas mais chocantes para mim. Direitos e mais direitos sendo paulatinamente suprimidos e elas ainda cultivavam em si um otimismo, que em muitos momentos não permitia que enxergassem a violência maior que estava por vir. Uma delas chega a relatar que os judeus foram se adaptando, primeiro à marca costurada na roupa, depois ao remanejamento para os guetos, até à falta de comida, moradia e condições de higiene básicas. Tudo isso, sem compreender o motivo.

“Estávamos no inferno, mas não sabíamos por quê”, disse Anka (p. 86).

E foram muitos infernos em um só. Se os guetos já não davam as condições mínimas de sobrevivência para um ser humano, perto de Auschwitz II-Birkenau, Freiberg e Mauthausen eram verdadeiros palácios. Nesses três campos de concentração, viver ou morrer era uma questão de sorte. Fome, desnutrição, piolhos e percevejos, frio e calor excessivos, trabalho escravo, espancamentos, mutilações e o medo constante de pararem nas câmaras de gás.

Por meio do relato dessas três mulheres, que não se conheciam, mas vivenciaram o mesmo terror, subjugadas pelo mesmo regime criminoso, enquanto estavam gestando novas vidas, tive a noção mais aproximada do nível de crueldade que um ser humano é capaz de atingir. Vê-las apostando a todo momento de que os alemães comandados por Hitler não chegariam a tanto, demonstra o quanto somos capazes de ser tolerantes diante de indícios cotidianos de que as coisas não vão bem. Tomamos o outro por nós mesmos e, muitas vezes, há aí uma assimetria gigante que não conseguimos enxergar. O livro demonstra o quanto o fascismo é uma serpente que cresce, aos poucos, e quando nos damos conta, perdemos demais e estamos muito fragilizados para nos opor de forma vigorosa ao seu bote.

“As palavras que ouviam eram surrealistas e negativas demais para serem verdadeiras. Mas aí veio a assustadora suspeita de que aquelas criaturas cadavéricas, de olhar insano e andar arrastado, estavam falando a verdade” (p. 162) – Relato ao descobrirem por meio de prisioneiras veteranas que muitos foram envenenados e que a fumaça inalada ao chegarem no campo de concentração era de prisioneiros mortos, muitos deles seus próprios parentes e conhecidos.

As histórias de Priska, Rachel e Anka, e consequentemente de seus filhos (Eva, Mark e Hana), chocam e revoltam. E esse deve ser o efeito afinal. Isso é o óbvio e está dentro do esperado para qualquer ser humano que se preze. Ao mesmo tempo, demonstram a surreal força feminina ao enfrentarem a insalubridade e os crimes cotidianos de um regime fascista para gerarem novas vidas. É a esperança nascendo e sobrevivendo no local mais lúgubre e improvável.

Trata-se de um livro de linguagem acessível, que, a meu ver, deveria ser trabalhado por todos os professores de história ao abordarem o nazismo em sala de aula. Não só pelo relato em si e por sua capacidade de humanizar um momento histórico tão relevante para história mundial, mas, também, por ser um livro amparado em uma ampla pesquisa. Ao fim da edição, há uma lista de documentos e fontes consultadas pela autora para reconstruir essas narrativas.

Agora, se mesmo conhecendo a história dessas três mulheres extraordinárias, algum indivíduo ainda defender o nazismo, sinceramente, acho que pouco há de humano nesse ser vivente.

Ficha técnica:

Título original: Born Survivors: Three Young mothers and their extraordinary story of courage defiance and survival.

Tradução: Bruno Alexandre. 

Ano: 2017

Coleção Folha: Mulheres na Literatura.

Resenha: Admirável Mundo Novo

Uma sociedade distópica, escrava da ciência e da tecnologia. Em 1932, ano de lançamento da primeira edição de Admirável Mundo Novo, ainda estávamos longe de conhecer a internet, os dispositivos móveis e a inteligência artificial. Ainda assim, Aldous Huxley ousou pensar muito a frente de seu tempo, criando uma sociedade otimizada, higienizada e perfeitamente estável. Nela, os seres humanos (ou produtos humanos) são criados para desempenhar papéis em um sistema de eugenia infalível.

Não há Deus, há Ford. Não há amor, apenas relacionamentos sexuais. Não há pais e mães, somente tubos de incubação do Processo Bokanovsky. E felicidade? Na Londres de 2540, o segredo da felicidade e da virtude é: “…amarmos o que somos obrigados a fazer. Tal é a finalidade de todo o condicionamento: fazer as pessoas amarem o destino social de que não podem escapar” (p. 29).

Nessa sociedade, o diferente é regulado, não existe violência e, tampouco, conflito. No caso de sentir uma emoção mais forte, é possível apelar para o topor do “soma”. Huxley consegue com o olhar firme e crítico para o seu tempo, pensar em uma distopia que se manteve atual e, mais que isso, que antecipou muito do que hoje vivemos.

Ao longo do livro, várias são as críticas ao capitalismo, ao modelo de produção fordista e consumo desenfreado. Não à toa, os primeiros incômodos com o sistema social implementado são expressados pelo personagem Bernard Marx, em alusão à Karl Marx, que se sentia um pária nesse mundo.

Tais críticas se intensificam quando somos apresentados ao Selvagem, que é lido como ultrapassado pelos produtos humanos viventes no admirável mundo novo. Entretanto, este se mostra poético, amável, violento e vulnerável, em suma, verdadeiramente humano.  

“– Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a liberdade, quero a bondade. Quero o pecado.

– Em suma – disse Mustafá Bond –, o senhor reclama o direito de ser infeliz.

– Pois bem, seja – retrucou o Selvagem em tom de desafio.

– Eu reclamo o direito de ser infeliz.” (p. 236).

E não é apenas sobre as consequências da tecnologia e do capitalismo que Huxley nos faz refletir, a partir de seu romance distópico, mas sobre qualquer forma de governo que tiranize e homogenize os seres humanos, em busca de um ideal de estabilidade. Hurley é crítico ao que chama de radicais nacionalistas e coloca no mesmo cofo o bolchevismo e o fascismo de Hitler. É, sem dúvida, algo controverso, mas que não desabona a importância histórica e as reflexões que o livro suscita.

Na edição que li, o próprio autor manifesta no prefácio a ideia de uma terceira via, entre a utópica e a primitiva, que não foi trabalhada no livro. Esta seria economicamente descentralista e politicamente cooperativista.

“A ciência e a tecnologia seriam usadas como se, a exemplo do sábado, tivessem sido feitas para o homem, e não (como no presente e ainda mais no Admirável Mundo Novo) como se o homem tivesse de ser adaptado e escravizado a elas” (p. 9).

Hoje, passados muitos anos do lançamento desse clássico da ficção científica, pergunto: estamos mais próximos da distopia perfeccionista do livro ou dessa terceira via?

Ficha técnica:

Título original: Brave new world

Tradução: Lino Vallandro e Vital Serrano

Editora Mediafashion

Coleção Folha Grandes Nomes da Literatura

Ano: 2016 (Original – 1932)